Há dias, passei pelo Alto da Rocha do Canto das Baía, sítio onde o escritor açoriano Dias de Melo (DM), tinha a sua casa e onde quase sempre terminava as suas obras.
Senti saudades dele, da sua amizade, do cheiro do seu cachimbo, do seu chapéu de palha à moda do Pico, do seu bordão que o transformava num ancião baleeiro que muitas estórias tinha sempre para contar.
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De vez em quando, telefonava-me para a Engrade, cramando que o seu computador ou a sua impressora tinham isto e mais aquilo. “Se pudesses passar por aqui, fazias-me um favor. Obrigado!” No dia adiante, lá estava eu: “Senhor Professor, Oh Senhor Professor!” –chamava ao portão. E ele, na sala, sentado à secretária: “Entra!” A sua voz tomava um novo alento. E seguia-se uma longa conversa, pois a pretensa avaria era um mero pretexto para ter alguém com quem conversar e recordar estórias da actividade baleeira - o tema maior do seu universo ficcional, constituído por mais de três dezenas de livros.
“Já cortaram as faias em frente de casa. Agora já posso ver o porto, o Terreiro e o Morrocão da Calheta.” -disse-me um ano. “Sabes, José Gabriel: já me vai custando subir até ao caminho e aqui, nesta freguesia, os caminhos ou são a subir ou são a descer. Quando vou lá abaixo, já me custa! mas sempre agarro uma boleia para voltar para casa. É o que vale!”
Se estivesse vivo, DM teria visto, certamente, sábado passado, a regata à vela “Terra Baleeira” entre as Lajes e a Calheta, com mais de uma dezena de botes do Pico e do Faial, com tripulações formadas “ex-aequo” por rapazes e raparigas. O acontecimento não despertou grande interesse na terra de Mestre José Faidoca, esse ídolo que Dias de Melo nunca deixou de exaltar em todas as obras literárias, pela sua bravura, competência, honradez, coragem e humanidade.
A Calheta de Nesquim, hoje, é uma terra de ídolos e de memórias: do Capitão Anselmo, fundador da primeira armação baleeira do Pico, do nosso maior escritor baleeiro – Dias de Melo, de um dos maiores baleeiros açoriano - Mestre José Faidoca, e de tantos outros que da caça à baleia fizeram o sustento de suas famílias, sofrendo na pele as agruras do mar e as injustiças dos homens.
Este foi o imaginário que persistiu no escritor/baleeiro até à sua partida. Quando, desde o alvor da manhã, se sentava na sua pequena secretária, na sua casa à Rua de São Gonçalo, em Ponta Delgada, fazia da escrita um magistério social, reavivando com uma lucidez impressionante, a coragem, a honradez e a falsidade de homens do seu tempo.
Pela obra de DM passam também situações pessoais, sociais e políticas vividas na sua juventude, enquanto estudante na cidade da Horta. Alguns dos episódios são auto-biográficos, que ele me contava, como se estivesse a ler o seu próprio livro.
Na primeira entrevista que me concedeu, em 1979, para o suplemento literário do “Correio dos Açores” DM disse-me que o “Cidade Cinzenta” era a sua melhor obra. A partir de então, muitos outros títulos foram publicados, sobre uma diversidade de assuntos. Deixou algumas obras inéditas como “A Pensão do Desterro”, cuja fotocópia me ofereceu. São documentos auto-gráficos de grande importância para a compreensão da personalidade deste escritor. Alguns meses antes de falecer, escrevia um livro recordando episódios ocorridos nos últimos tempos de vida. Julgo que ainda se encontra no seu computador portátil HP, bem como algumas cartas pessoais para amigos das suas relações.
De grande interesse é também a grande quantidade de cassetes, onde ele gravou os depoimentos transcritos, em vários volumes, “Na memória das Gentes”. Esses documentos sonoros foram entregues à Secretaria Regional da Educação, entidade que financiou todo o trabalho.
Seria de grande interesse que essa documentação, cuja deterioração pode estar eminente, fosse rapidamente digitalizada, e fosse salvaguardada pela Universidade dos Açores, para posterior investigação pelo Departamento competente.
A Obra de Dias de Melo foi quase toda concebida e escrita em Ponta Delgada. Os seus artigos estão impressos no semanário A ILHA e no AÇORES, do Mestre Cícero, como ele designava o Director do antigo diário de Ponta Delgada.
Impõe-ser, por isso, que a Câmara Municipal perpetue, condignamente, a sua memória e a Universidade a sua obra.
À cidade da Horta, falta também reconhecer todo o carinho que por ela nutria e o ambiente social e cultural da sua juventude, reflectido nos seus livros.
Ao Pico, terra-mãe que ele soube respeitar e universalizar, impõe-se a homenagem maior, a começar pela transferência dos seus restos mortais para junto do seu muito respeitado Mestre José Faidoca.
Dia de Melo figura no elenco dos maiores escritores açorianos.
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